Written by Editora on September 18, 2018 in Blog

Por Jacqueline Sinhoretto

Publicado No Blog Segurança Pública do Correio Braziliense em 22 de abril de 2018

A condenação de Lula sob a acusação de corrupção e o espetáculo em torno do processo penal e de sua prisão deixam evidentes as promessas não cumpridas da justiça penal. O processo excepcional que sofre Lula denuncia o funcionamento ordinário da justiça criminal no Brasil, pelas suas características incomuns tanto quanto pelo que há de regularidade encontrada em outros casos.

A primeira promessa não cumprida refere-se à prisão de um indivíduo como instrumento eficaz para coibir práticas sociais de mesma natureza. É o famoso efeito dissuasório da pena. Muita gente concorda com a afirmação de que prender um indivíduo é necessário para que outros indivíduos sintam o peso do constrangimento e acatem a desistência de práticas semelhantes por medo. É uma crença bastante ingênua de sustentar num contexto em que a justiça penal é mobilizada por instituições e seres humanos que tem seus próprios interesses políticos e escolhem seus alvos sem ter que explicar publicamente porque dão andamento a uma investigação e não a outra.

Chamamos isso de seletividade da justiça penal, que no Brasil associa-se a uma peculiar ausência de qualquer mecanismo de prestação de contas sobre o que deixa de ser investigado. O poder de selecionar quem será investigado e incriminado ou que condutas serão alvo de repressão é um dos poderes mais sensíveis para o equilíbrio democrático e a equidade diante das leis. Mas, no Brasil, quem exerce este poder atua num contexto de pouquíssimos constrangimentos, tratando-se de um poder que é, na prática, absoluto.

Dado o contexto altamente politizado e espetacular em que se desenvolveu a acusação (transmitida pela TV, por meio de coletiva de imprensa dos procuradores federais), o depoimento do acusado, o protagonismo do juiz nas mídias, transmitindo conteúdos abertamente políticos sobre a causa que julga, antecipando a decisão antes do processo estar concluído, é fácil compreender que acusadores e julgador tem lado e que o lado que assumem é frontalmente contrário, no espectro político, à posição ocupada por Lula. Essa parcialidade abertamente assumida e o contexto da politização da acusação criminal muito dificilmente darão conta de realizar o efeito dissuasório da pena para os adversários políticos de Lula, especialmente os que ocupam posições próximas dos acusadores no espectro político.

Dito de modo simples, se a corrupção é coisa do PT e se, no PT, a corrupção é culpa do Lula, todos os demais atores da política brasileira ficam desobrigados de mudar suas práticas, imunes ao efeito dissuasório da pena. A pena é para Lula, mas se você e eu não somos o Lula, nada pesa contra nós. A promessa penal, portanto, é inócua.

Igualmente ingênua é a pressuposição de que Lula é apenas o primeiro que inaugura uma fila de investigações bem-sucedidas e condenações equivalentes que alcançará todo o espectro político, eliminando todos os agentes contaminados. Quem assegura que os investigadores investiguem com isonomia? O que assegura que acusadores e juízes abram mão de suas preferências pessoais e conveniências corporativas? Temos que reconhecer que no Judiciário brasileiro esses balanços não estão previstos. O Ministério Público tem baixíssimo – para não dizer nulo – grau de controle público interno ou qualquer forma de controle externo sobre suas decisões de política criminal.

A individualização da conduta, uma exigência do processo penal, é bastante falha no caso de Lula, posto que a acusação não tem evidências dos benefícios concretos recebidos pelos corruptores, nem da participação concreta do acusado. Essa é a segunda promessa não cumprida do processo penal: a corrupção é vista como uma falha de caráter de algumas pessoas específicas e não como uma rede de relações estáveis mantidas entre os atores econômicos e os atores políticos. Punir indivíduos não muda o modo como operam essas relações, porque não cria mecanismos de defesa das instituições públicas contra investidas de interesses de empresas.

Essa, em minha opinião, é a promessa não cumprida do sistema penal que mais apresenta problemas para as questões de justiça e segurança e a deterioração da democracia. O tratamento penal do conflito esconde o fato de que nada efetivamente está sendo feito para proteger o sistema político, o Estado, as instituições da democracia de interferências indevidas do poder econômico.

O resultado de uma pesquisa de opinião sobre a prisão de Lula apontou que 40% dos ouvidos discordam da prisão, mais a parcela que não tem opinião formada, restando apenas 54% que se declaram satisfeitos[1]. É pouco em termos de confiança no sistema de justiça, precário como efeito dissuasório, e problemático em termos de produção de sentido comum de justiça.

Corrupção, tráfico de drogas e armas, milícias, modalidades organizadas de crime, todas elas dependem de reformas institucionais, criação de barreiras efetivamente vigiadas, controle social sobre as instituições públicas. Apostar todas as fichas em condenações individuais seletivas (o penal é e sempre será seletivo), é jogar o jogo de manter tudo como está, apenas impedindo alguns jogadores. No caso de Lula, é difícil substituí-lo dado o estatuto político de sua figura; mas diretores de empresas corruptoras são substituídos facilmente, gerentes de boca, vendedores de drogas ilegais no varejo, seguranças armados de atividades ilícitas, todos são imediatamente substituídos, o que torna o investimento exclusivo no sistema penal um instrumento muito mais de conservação das economias ilícitas do que de seu combate.

Se algo está mudando no cenário das empresas brasileiras que atuam no setor de infraestrutura, isto tem muito mais a ver com exigências internacionais e pressões de competição para a adoção de mecanismos de compliance e transparência do que com a imposição de penas – muito menos ainda do que a quantidade de anos da pena. É o que se comenta nos meios de auditores e advogados.

Assim também o futuro de médio e longo prazo do tráfico de drogas terá muito mais a ver com o interesse de empresas formalmente constituídas em atuar no mercado regulamentado de derivados de cannabis e outros produtos do que com o medo dos grandes empreendedores de serem pegos pelo sistema penal.

Significa que o punitivismo, que opera um sistema de desigualdades e violações flagrantes de direitos humanos, em que é peça fundamental de justificação, além de ser estritamente conservador do status quo das economias criminais, oculta a emergência de mecanismos e procedimentos de regulamentação e prevenção de delitos que efetivamente poderiam cumprir um papel no fortalecimento da democracia e na produção de uma sociedade menos violenta e desigual.

[1] Datafolha, 15/04/2018.

A condenação de Lula sob a acusação de corrupção e o espetáculo em torno do processo penal e de sua prisão deixam evidentes as promessas não cumpridas da justiça penal. O processo excepcional que sofre Lula denuncia o funcionamento ordinário da justiça criminal no Brasil, pelas suas características incomuns tanto quanto pelo que há de regularidade encontrada em outros casos.

A primeira promessa não cumprida refere-se à prisão de um indivíduo como instrumento eficaz para coibir práticas sociais de mesma natureza. É o famoso efeito dissuasório da pena. Muita gente concorda com a afirmação de que prender um indivíduo é necessário para que outros indivíduos sintam o peso do constrangimento e acatem a desistência de práticas semelhantes por medo. É uma crença bastante ingênua de sustentar num contexto em que a justiça penal é mobilizada por instituições e seres humanos que tem seus próprios interesses políticos e escolhem seus alvos sem ter que explicar publicamente porque dão andamento a uma investigação e não a outra.

Chamamos isso de seletividade da justiça penal, que no Brasil associa-se a uma peculiar ausência de qualquer mecanismo de prestação de contas sobre o que deixa de ser investigado. O poder de selecionar quem será investigado e incriminado ou que condutas serão alvo de repressão é um dos poderes mais sensíveis para o equilíbrio democrático e a equidade diante das leis. Mas, no Brasil, quem exerce este poder atua num contexto de pouquíssimos constrangimentos, tratando-se de um poder que é, na prática, absoluto.

Dado o contexto altamente politizado e espetacular em que se desenvolveu a acusação (transmitida pela TV, por meio de coletiva de imprensa dos procuradores federais), o depoimento do acusado, o protagonismo do juiz nas mídias, transmitindo conteúdos abertamente políticos sobre a causa que julga, antecipando a decisão antes do processo estar concluído, é fácil compreender que acusadores e julgador tem lado e que o lado que assumem é frontalmente contrário, no espectro político, à posição ocupada por Lula. Essa parcialidade abertamente assumida e o contexto da politização da acusação criminal muito dificilmente darão conta de realizar o efeito dissuasório da pena para os adversários políticos de Lula, especialmente os que ocupam posições próximas dos acusadores no espectro político.

Dito de modo simples, se a corrupção é coisa do PT e se, no PT, a corrupção é culpa do Lula, todos os demais atores da política brasileira ficam desobrigados de mudar suas práticas, imunes ao efeito dissuasório da pena. A pena é para Lula, mas se você e eu não somos o Lula, nada pesa contra nós. A promessa penal, portanto, é inócua.

Igualmente ingênua é a pressuposição de que Lula é apenas o primeiro que inaugura uma fila de investigações bem-sucedidas e condenações equivalentes que alcançará todo o espectro político, eliminando todos os agentes contaminados. Quem assegura que os investigadores investiguem com isonomia? O que assegura que acusadores e juízes abram mão de suas preferências pessoais e conveniências corporativas? Temos que reconhecer que no Judiciário brasileiro esses balanços não estão previstos. O Ministério Público tem baixíssimo – para não dizer nulo – grau de controle público interno ou qualquer forma de controle externo sobre suas decisões de política criminal.

A individualização da conduta, uma exigência do processo penal, é bastante falha no caso de Lula, posto que a acusação não tem evidências dos benefícios concretos recebidos pelos corruptores, nem da participação concreta do acusado. Essa é a segunda promessa não cumprida do processo penal: a corrupção é vista como uma falha de caráter de algumas pessoas específicas e não como uma rede de relações estáveis mantidas entre os atores econômicos e os atores políticos. Punir indivíduos não muda o modo como operam essas relações, porque não cria mecanismos de defesa das instituições públicas contra investidas de interesses de empresas.

Essa, em minha opinião, é a promessa não cumprida do sistema penal que mais apresenta problemas para as questões de justiça e segurança e a deterioração da democracia. O tratamento penal do conflito esconde o fato de que nada efetivamente está sendo feito para proteger o sistema político, o Estado, as instituições da democracia de interferências indevidas do poder econômico.

O resultado de uma pesquisa de opinião sobre a prisão de Lula apontou que 40% dos ouvidos discordam da prisão, mais a parcela que não tem opinião formada, restando apenas 54% que se declaram satisfeitos[1]. É pouco em termos de confiança no sistema de justiça, precário como efeito dissuasório, e problemático em termos de produção de sentido comum de justiça.

Corrupção, tráfico de drogas e armas, milícias, modalidades organizadas de crime, todas elas dependem de reformas institucionais, criação de barreiras efetivamente vigiadas, controle social sobre as instituições públicas. Apostar todas as fichas em condenações individuais seletivas (o penal é e sempre será seletivo), é jogar o jogo de manter tudo como está, apenas impedindo alguns jogadores. No caso de Lula, é difícil substituí-lo dado o estatuto político de sua figura; mas diretores de empresas corruptoras são substituídos facilmente, gerentes de boca, vendedores de drogas ilegais no varejo, seguranças armados de atividades ilícitas, todos são imediatamente substituídos, o que torna o investimento exclusivo no sistema penal um instrumento muito mais de conservação das economias ilícitas do que de seu combate.

Se algo está mudando no cenário das empresas brasileiras que atuam no setor de infraestrutura, isto tem muito mais a ver com exigências internacionais e pressões de competição para a adoção de mecanismos de compliance e transparência do que com a imposição de penas – muito menos ainda do que a quantidade de anos da pena. É o que se comenta nos meios de auditores e advogados.

Assim também o futuro de médio e longo prazo do tráfico de drogas terá muito mais a ver com o interesse de empresas formalmente constituídas em atuar no mercado regulamentado de derivados de cannabis e outros produtos do que com o medo dos grandes empreendedores de serem pegos pelo sistema penal.

Significa que o punitivismo, que opera um sistema de desigualdades e violações flagrantes de direitos humanos, em que é peça fundamental de justificação, além de ser estritamente conservador do status quo das economias criminais, oculta a emergência de mecanismos e procedimentos de regulamentação e prevenção de delitos que efetivamente poderiam cumprir um papel no fortalecimento da democracia e na produção de uma sociedade menos violenta e desigual.

[1] Datafolha, 15/04/2018.